quarta-feira, abril 30, 2014

Os pais que fazem um "business plan" para os filhos

No estado de Nova Iorque, uma creche cancelou uma peça de teatro dos alunos invocando o seguinte argumento: nós estamos aqui para preparar as crianças para a sua carreira e não para brincadeirinhas teatrais. Numa carta assinada pelo director e quatro educadoras, a Harley Avenue Primary School (Elwood, NY) informou que o espectáculo marcado para 14 e 15 de Maio foi cancelado porque os alunos têm de continuar a trabalhar para que fiquem prontos para a "universidade e carreira". Repare-se que não estamos a falar de jovens de 16 anos, mas de crianças. A inocência está pela hora da morte.
Esta brutalidade executiva é chocante, mas obedece a uma mentalidade vigente em muitos papás de lá e de cá. Já repararam que as crianças já não podem ser crianças? Já repararam que, além da escola, elas têm o dia preenchido com actividades destinadas à construção do seu futuro profissional? É como se estivessem a cumprir um business plan cuidadosamente preparado por papás que parecem partir do pressuposto que as criancinhas são tabulas rasas, sem centelha própria, tabulas lisinhas à espera dos inputs centrados nas skills. Além das aulas normais, o pequeno-que-tem-de-ser-médico-custe-o-que-custar tem de passar por aulas suplementares de matemática, tem de cursar três institutos de três línguas diferentes, mandarim incluído, porque o mandarim vai ter muita saída, e ainda tem de vergar a mola em aulas de música e/ou desporto. Porquê a música? Porque gosta? Não, porque a música disciplina o cérebro, logo é útil no seu caminho até à medicina. Porquê a natação? Porque gosta de estar na água? Não, porque é uma actividade que disciplina, logo é bom para a sua futura carreira de Michael Phelps do estetoscópio. 
Sim, muitos pais não estão no business de criar filhos, o seu business é construir pequenos robôs, seres formatados desde a infância para um destino profissional. Aquela creche americana é só um eco desta nova estirpe de pais. O que fazer com crianças de quatro anos? Talvez um bootcamp de development de skills de networking necessária à entrepreneurship. Aliás, é um escândalo que uma criança de quatro anos não saiba já debater em inglês, não é verdade? Um escândalo só comparável ao facto de uma criança de seis anos querer brincar em vez de estar a preparar-se para a "faculdade e carreira". A idade da inocência está a acabar antes de começar. 

Henrique Raposo
Expresso Online


quarta-feira, abril 23, 2014

O 25 de Abril e a escola de Durão Barroso e Nuno Crato - crónica de Santana Castilho

Tornou-se um lugar-comum dizer que a história da Educação da democracia é a história de sucessivas reformas avulsas, quase sempre descontextualizadas e elaboradas sem o concurso dos docentes. Mas a esta característica consensual veio acrescentar-se a desolação dos anos de Crato.
Os constrangimentos impostos pela crise sofreram a interpretação de um fanático dos resultados quantitativos que, incapaz de ponderar os efeitos das suas políticas, está a produzir sérias disfunções no sistema de ensino, que nos reconduzem à escola de 24 de Abril, aquela que Durão Barroso evocou e celebrou há pouco, no antigo Liceu Camões. Porque ambos nos querem fazer acreditar que o sonho de modernizar o país foi um erro, que estava acima das nossas possibilidades, que devíamos ter continuado pobres e sem ambições, a eles e a todos os que olham a Educação como mercadoria, aos que ainda não tinham nascido em Abril de 74 e hoje destroem Abril com a liberdade que Abril lhes trouxe, importa recordar, serenamente, o que Abril fez:
Em 1974 existiam apenas cerca de 100 escolas técnicas e liceus, para 40.000 alunos. Em 40 anos de democracia construíram-se mais de 1000 novas escolas, para mais de milhão e meio de alunos.
Em 1974 havia apenas 26.000 professores. Desses, apenas 6000 eram profissionalizados. Em 40 anos de democracia formaram-se e profissionalizaram-se milhares de professores. Antes dos predadores que hoje governam, eram 150.000.
Em 1974 imperava o livro único e quatro anos bastavam. Em 40 anos de democracia chegámos a uma escolaridade obrigatória de 12 anos.
Em 1974 fechavam-se crianças nos galinheiros e a taxa de cobertura do pré-escolar era 8%. Em 40 anos de democracia essa taxa ultrapassou os 80%, graças a uma rede de pré-escolar que acolhe hoje cerca de 270.000 crianças.
Em 1974 a taxa de escolaridade aos 17 anos era de 28%. Em 40 anos de democracia passou para 80%.
Em 1974 a universidade era para uma escassa elite e para homens. Em 40 anos de democracia trouxemos para a universidade cerca de 370.000 portugueses, dos quais mais de metade são mulheres.
A trave mestra do desenvolvimento da sociedade portuguesa, a Educação, foi liminarmente implodida pelo actual Governo, que rejeitou uma das bandeiras de Abril, a educação para todos. Agora que Abril dobra a esquina dos 40, é urgente que a denominada sociedade civil desperte para o sombrio que mancha a paisagem humana das nossas escolas: preocupantes sinais de violência na relação entre alunos e no seu relacionamento com professores e funcionários; esgotamento físico e psíquico do corpo docente, vergado pelo grotesco burocrático de tarefas inúteis, impostas por políticas despóticas; êxodo precoce dos professores mais experientes; clima de luta insana por uma carreira sem futuro, donde se esvaiu a cooperação e a confiança que cimentava a comunidade humana dos docentes.
Celebrar Abril, adiado para a Educação até um dia, passará, imperiosamente, por:
- Gerar um compromisso nacional duradouro entre as forças partidárias quanto às políticas que estruturam o sistema de ensino, despolitizando os serviços técnicos, desburocratizando a vida das escolas e protegendo a administração superior da volatilidade da política.
- Reestruturar a Inspeção-Geral da Educação, orientando-a prioritariamente para a supervisão pedagógica organizada em áreas científicas e colocando-a sob dupla tutela (Assembleia da República e Governo).
- Subtrair o financiamento básico do ensino obrigatório à lógica casuística de qualquer Governo, para que a escola inclusiva, para todos, não seja presa fácil de derivas de austeridades de ocasião.
- Adoptar a verdadeira e sempre adiada autonomia das escolas, como alternativa à municipalização do ensino, vertente falsa da falácia da desconcentração do poder.
- Reverter a política de privatização da escola pública, separando claramente o que é público do que é privado e clarificando os modelos de financiamento: financiamento público para o que é público, financiamento privado para o que é privado.
- Reorganizar globalmente os planos de estudo e os programas disciplinares, em sede de estrutura profissionalizada e especializada em desenvolvimento curricular, dando-lhes coerência, recuperando a dignidade das humanidades e das expressões e adequando-os, em extensão, ao que a psicologia do desenvolvimento
- Devolver dignidade e autoridade aos professores, devolver-lhes a confiança do Estado e devolver-lhes espaço e tempo para a indispensável reflexão sobre a prática profissional e sobre o ensino que professam.
- Devolver às escolas a democraticidade perdida, adequando a natureza dos órgãos às realidades sociais existentes e abandonando a lógica concentradora do poder num só órgão.
- Reverter a solução dos mega-agrupamentos, que provocaram custos humanos inaceitáveis para alunos, famílias, professores e funcionários postula como limites.