"Hoje é o meu terceiro dia como
aposentada.
Acordei à hora habitual e lembrei-me que, pelo menos hoje, os
meus alunos não teriam tantas substituições; a sexta-feira era o único dia em
que não tinham aulas comigo.
Até à última semana tinha com eles: 6
tempos de Língua Portuguesa, 3 de Língua Inglesa, 2 de Atividades de Apoio ao
Estudo, 1 de Formação Cívica, 1 de Oficina de Leitura e Escrita e 2 de apoio a
Língua Inglesa. Muitas horas, ao longo de um ano e dois meses… uma ligação
profunda interrompida abruptamente. Sinto-lhes a falta e, de acordo com alguns
emails recebidos, eles também sentem a minha, mesmo os mais
complicados.
Então por que saí? Limite de idade? Incapacidade física
comprovada? Reforma compulsiva?
Nada disso. Fui mesmo eu que pedi a
aposentação antecipada. Tenho 57 anos e meio, 36 anos de serviço efetivo, todos
na escola pública, sem licenças nem destacamentos. Saí com 24% de penalização e
com a noção clara que ainda tinha muito para dar à profissão que segui por
vocação, a que me dediquei em regime de exclusividade, seguindo o lema “I’m a
teacher, I touch the future!”.
Então o que me levou a pedir a aposentação
em Dezembro último? É preciso recuar uns anos, lembrar o ano em que começaram a
transformar a profissão docente numa doença terminal.
Em 2005, cheguei de
férias em setembro e tomei o primeiro contato com as grandes reformas da então
Ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues. Surgiram as famosas OTEs-
ocupação de tempos escolares, acabaram os chamados “feriados” e os meninos
deixaram de poder libertar energias nos recreios quando um professor faltava e
passaram a ficar na sala com outro professor, a fazer… . Eu, que nunca tinha
problemas disciplinares (a partir de outubro de cada ano letivo estavam sempre
resolvidos) passei por algumas situações bem desagradáveis. O mais curioso é
que, lá no pequeno mundo onde me movia, quem faltava muito continuou e continua
a fazê-lo, quem não faltava começou a ficar exausto e a adoecer. Infelizmente
são vários os colegas que se encontram afastados por doença, principalmente a
partir do ano passado. Até concordo com as OTEs, mas com professores
específicos, com tarefas próprias e a crise não deixa…
Depois vieram mais
pérolas: o Estatuto do Aluno com as célebres Provas de Recuperação (os atuais
PITs –Plano Individual de Trabalho também não são muito diferentes ), as
alterações ao Estatuto da Carreira Docente e a Avaliação de Desempenho Docente.
Divulgou-se a mentira da ausência de avaliação e da progressão automática.
Estávamos em 2007: exigiam a definição de objetivos individuais e eu defini
apenas um: chegar à aposentação em pleno uso das minhas faculdades mentais. Não
entreguei os ditos objetivos individuais, fui notificada por incumprimento. Até
foi interessante. Nessa altura ainda sentia fôlego para estas lutas e até me
davam algum gozo. Maior ainda foi o que me deu ver que as ameaças deram em nada,
como seria de esperar.
Em 2008, criaram-se os professores titulares. Eu
que sempre quis ser apenas professora, uma professora significativa mas nada
mais do que isso, tornei-me titular. A escola partiu-se completamente. Ainda por
cima, o mundo burocrático desabou sobre os ditos titulares. Sempre desempenhei
cargos, não existe no meu registo biográfico um ano em que tivesse apenas dado
aulas, mas ter de desempenhar dois e três cargos por ser titular e ter a redução
máxima do art.º 79.º era muito pesado. Existiam muitos formulários, muitas
siglas, muitas reuniões; escasseava o tempo para fazer o importante, para
preparar aulas a sério e não de memória, para fazer avaliação diferenciada ou
remediação ativa. Comecei a sentir-me deprimida. Não me deixavam cumprir a meu
gosto o conteúdo funcional da minha profissão.
Ainda por cima os
titulares eram prisioneiros, não podiam concorrer, eram “propriedade” dos
quadros dos respetivos agrupamentos. Vi colegas serem ultrapassados por outros
com menores qualificações. Conheço alguns que continuam a fazer muitos
quilómetros por dia graças a serem titulares.
Depois chegou a Drª Isabel
Alçada e pensei que as coisas podiam melhorar. Puro engano. Escreveu uma
aventura suicida, envolta em sorrisos e mensagens pueris, como aquela de votos
de bom ano letivo, que passou em todos os blogues. O novo modelo da Avaliação de
Desempenho Docente, a reformulação do Estatuto do Aluno com os tais Planos
Individuais de Trabalho, a requalificação das escolas que deixou ao país uma
dívida incomensurável (para não falar das dificuldades das ditas para pagarem a
conta da luz e outras) e, finalmente, a reorganização da rede com a criação dos
Mega-agrupamentos.
Em setembro de 2009, regressei de férias com a
sensação de não ter reposto as energias, como já vinha sucedendo desde 2006. Mal
entrei, informaram-me que tinha de ir apresentar-me noutra escola, a escola
sede do Mega-agrupamento. Fiquei siderada. Então nós éramos Agrupamento TEIP e
agora íamos ficar na dependência de uma escola secundária, sem a mínima
experiência do que é ser agrupamento, até porque as secundárias eram
não-agrupadas? A resposta foi afirmativa.
Ainda em choque, dirigi-me à
nova Direção. Fui muito bem recebida. Na reunião geral ouvi falar de uma fusão
não desejada, de um processo doloroso que teríamos de digerir, encarar como um
desafio e transformar num caso de sucesso. A economia manda! Vamos a
isso!
Ah, mas esta não era a única novidade: em 2009/10 eu seria Diretora
de Turma, Coordenadora dos Diretores de Turma do 2.º ciclo, Gestora de
Disciplina e Professora Relatora. Por último seria professora das áreas já
referidas. A função de Relatora era a que mais me custava. Tentei escusar-me.
Nada feito. Em nome da senioridade, de acordo com os critérios legais, tinha
mesmo de ser eu.
Em dezembro deixei de ser Gestora de Disciplina, pois
finalmente perceberam que a minha redução estava há muito ultrapassada. O resto
continuou igual. Reuniões infindáveis, deslocações quase diárias entre escolas,
às vezes três idas e vindas por dia. As reuniões de avaliação seriam também na
escola sede, pois o programa informático estava lá sediado ( onde mais poderia
estar?). Lá iríamos com os dossiers, todos ao monte a lançar níveis, faltas e
observações. Isto não estava a acontecer!
Mas ainda aconteceu pior. A
escola onde trabalhei desde 1987/88 tinha uma boa avaliação externa, estava
cotada como das melhores a nível nacional, nos famosos rankings aparecia
colocada bem acima das que não eram Territórios Educativos de Intervenção
Prioritária. Tudo isto era fruto de muito, muito trabalho. Mas afinal comecei a
ouvir que era tudo engano. Expressões veladas anunciavam que não era assim,
frases em que ninguém era nomeado ( por razões éticas, dizia-se) afirmavam que a
escola era um monte de dívidas e compadrios. Até a um sindicato chegaram estas
informações. Foi talvez a gota de água. Comecei a ter perturbações de sono,
dores de cabeça inexplicáveis, perdas de memória ( até do local onde estacionara
o carro, ou, durante a noite, onde era a minha própria casa de banho, num T2
minúsculo). O médico avisou-me do perigo que corria, aumentou-me a medicação,
quis que ficasse em casa. Não obedeci ao último conselho. Em vez disso,
entreguei o meu pedido de aposentação antecipada em dezembro. Calculava sair em
julho/agosto, de acordo com os prazos previstos.
Até ao fim do ano letivo
desenvolvi todas as funções com o máximo profissionalismo, mas sem nunca me
subjugar às fações que se foram criando, sem me calar sobre a paulatina
destruição de tudo o que estava construído e fora avaliado positivamente, para
ser substituído pelo que se considera agora um bom trabalho e não passa de um
conjunto de números, grelhas, estatísticas e documentos. A minha escola
descaracterizou-se completamente: os Serviços Administrativos estão desertos, as
assistentes operacionais são deslocadas conforme as “necessidades”, ainda não há
mediador/a social, os concursos arrastam-se, o número de professores ausentes
continua alto…
Senti e sinto o Mega-agrupamento como uma anexação
hitleriana. Conheci pessoas admiráveis, é certo, mas perdeu-se a articulação que
existia dentro da própria escola; com o primeiro ciclo nem se fala.
A 10
de outubro, chegou a comunicação oficial da minha aposentação. Trabalhei
conforme o previsto até ao fim do mês, fiz os primeiros testes, a reunião
intercalar do conselho de turma, o preenchimento das 44 páginas de dados para
estatística do modelo de Projeto Curricular de Turma, orientei as planificações
da disciplina de Inglês e a grelha de propostas para o Plano Anual de Atividades
do Agrupamento e a primeira grande atividade: um concurso de chapéus para
celebrar o Halloween. Tudo direitinho.
No dia 31, entreguei os prémios do
referido concurso, sorridente e vestida a preceito. Consegui suster as lágrimas
na minha última aula, cantando Ghostbusters com os meus alunos.
Quando
tocou saltaram das cadeiras num abraço em cacho, que me projetou contra a
parede, fizeram-me prometer que os iria visitar. Passei o bloco à colega de
História e Geografia de Portugal, pedindo-lhes que se concentrassem, pois até
iam ter teste na aula seguinte.
Já tinha entregue as chaves do cacifo e o
computador da equipa PTE que integrei desde início.
Saí de
cena.
Não irei para o ensino privado, fui sempre escola pública. Não irei
ocupar vagas ou postos de trabalho nesta ou noutra qualquer profissão, muito
menos numa altura destas. Além disso, eu só sei educar e ensinar. Encontrarei
uma ocupação válida. Partirei para uma coisa nova, ainda não sei bem o
quê.
Empurraram-me para a aposentação, que a paguem muitos
anos".
4 de
novembro de 2011, Maria Amélia Ribeiro Vieira, professora
aposentada