domingo, maio 03, 2009

Lá como cá - A ler com atenção

"Na casa simples de madeira e material na Vila Elza, periferia de Viamão, na Grande Porto Alegre (RS), o retrato de formatura da professora Glaucia Teresinha Souza da Silva, 25 anos, ocupa lugar de destaque. Da parede da sala, voltada para a porta da frente e os olhos dos visitantes, pende a imagem sorridente da jovem educadora de 1ª a 4ª séries. Mas a face de Glaucia, sentada no sofá abaixo da foto afixada com orgulho pelos pais, com quem mora, em nada lembra a felicidade eternizada no papel. Cabisbaixa, com crises ocasionais de choro, ela luta para se recuperar do traumatismo craniano provocado pela agressão de uma aluna na Escola Estadual Bahia, na capital gaúcha, no dia 23 de março. Além das dores de cabeça, arrasta-se apoiada em muletas e enfrenta um trauma psicológico que a inibe até de sair ao pátio da casa. A realização do sonho da filha de uma merendeira escolar de virar professora se transformou em pesadelo quando deparou com a crescente hostilidade dos alunos. Embora pretenda voltar a lecionar, precisa recuperar os movimentos e superar o medo. Confira trechos da entrevista concedida à Agência RBS em que a professora, também estudante de Direito com a matrícula trancada por falta de recursos, expõe um pouco do cotidiano vivido no interior das salas de aula do Brasil:
Diário Catarinense – Vale a pena lecionar?
Glaucia Teresinha Souza da Silva – É uma coisa que sempre gostei de fazer. Por mais que outras pessoas digam “tu ganha tão pouco”. Quando fazia Pedagogia, saía de casa de manhã cedo, ia para a faculdade, voltava para trabalhar em Porto Alegre, voltava para a faculdade de noite. Mas eu gostava. Me perguntavam se valia a pena tudo isso para ganhar uma miséria, e eu dizia “Não me importo, é o que eu gosto”.
DC – E gosta, ainda?
Glaucia – Eu gosto de dar aula. Claro, estão acontecendo coisas violentas, mas prefiro acreditar que isso é uma coisa à parte, que alguém vai tomar uma providência. Devemos pensar que, para cada aluno violento, tem 10, 15 outros que estão lá para aprender.
DC – Quando passou a perceber a mudança no ambiente escolar?
Glaucia – O que noto é cada vez mais os pais delegarem as responsabilidades para a escola. Antigamente, as crianças também não vinham prontas para a sala de aula, mas se esperava que chegassem com um mínimo de educação e respeito. Hoje, os pais acham que os professores devem ensinar tudo, até palavras mágicas, como “por favor” e “com licença”.
DC – Os pais dos alunos dizem isso abertamente?
Glaucia - Muitos pais dizem isso mesmo: “A obrigação é de vocês”. Os pais trabalham cada vez mais. A gente passa quatro horas com os alunos, mas o dia tem 24 horas. O resto do tempo eles passam onde, com quem, ouvindo o quê? Eles aprendem com a sociedade. Tem de ter alguém com eles dizendo isso pode, isso não pode. Os alunos estão muito largados. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) tem leis maravilhosas, mas está sendo mal-interpretado, porque ali tem direitos, mas tem deveres. Aprenderam a ler só os direitos.
DC – O professor se sente desamparado?
Glaucia – O adolescente percebeu que pode tudo. Pode desafiar, xingar, bater, jogar, fazer o que for, porque é menor de idade. Se o professor levantar um pouco o tom de voz, está errado. Se for um pouco mais ríspido, está errado. O professor não pode dizer não. Alguns pais dizem que o professor não pode xingar. Não é questão de xingar, mas de mostrar que não é assim que funcionam algumas coisas.
DC – O que leva a isso: o perfil do colégio, dos alunos, da direção?
Glaucia – Um pouco de tudo. A Bahia, escola onde sou docente, é bem localizada, mas atende um público que se considera excluído. O nível socioeconômico é muito baixo, então eles já vêm para a aula com a questão da diferença: “Vão me tratar de tal jeito porque eu sou assim”. E a gente não trabalha assim, não interessa a cor, a classe social. Tu estás ali para trocar conhecimento. Quando tive problema com um aluno, no ano passado, ele disse que já tinha mandado três professores embora. Eu disse para ele: “Eu não vou embora”.
DC – Em muitas escolas, a aula acaba virando uma queda de braço com alunos que querem tirar o professor?
Glaucia – Tem, tem disso. É a realidade.
DC – É uma experiência diária?
Glaucia – É um baque diário que se tem. É gritaria, xingamento, agressão verbal o tempo inteiro. É a disputa de dizer “não vou sair”, “não vou fazer”, “não estou nem aí”. No final do dia, o professor está arrasado. É cumulativo. Tu chegas ao final do ano e pensas: “O que vou fazer? Quero continuar aqui? Será que estou preparada? Vale a pena?”
DC – Se o ambiente escolar fosse menos estressante, teria sido mais fácil evitar o confronto que ocorreu?
Glaucia – Quando tu tens um ambiente que te ampara, coisas como a que aconteceu poderiam ser evitadas. Mas precisaria ser um amparo geral, ao professor e ao aluno. Eu sempre busquei soluções. Em momento nenhum fui para agredir a aluna. Acordo às 5h, às 6h estou saindo de casa, caminho um horror para chegar até a escola. O acesso para mim é superdifícil. Mesmo assim, levanto, faço o planejamento, vou para lá, dou aula. Para quê? Para ouvir falarem mal de mim? Para me xingarem? Os alunos já chegam com essa característica de se acharem excluídos. Qualquer palavra, qualquer coisa que tu fales, eles levam para o outro lado, porque estão preparados para brigar, para bater. É um clima pesado. Tudo o que tu falas pode ser mal interpretado.
DC – Os estudantes levam as avaliações para o lado pessoal?
Glaucia – Depende de como tu colocas isso para eles. No ano passado, tive três alunos que foram reprovados. Chamei para conversar na hora de dar a notícia. Falei direto para eles, porque os pais, por mais que a gente chame, não vão à escola.
DC – Em que ocasião a senhora consegue ter contato com pais de alunos?
Glaucia – Quando eu imploro. Aí, às vezes, algum se compadece. O pai do aluno que me desafiou no ano passado apareceu só dois meses depois. Havíamos solicitado que o pai ou a mãe comparecesse. A mãe nunca podia porque trabalhava. Passou-se um tempo, o pai apareceu com o menino e pediu desculpas. Assinamos um termo, por questão de segurança, que o menino não poderia me agredir de novo, e ele voltou a frequentar a escola. Ele frequentou mais um mês de aula, vinha um dia, faltava três, vinha dois, faltava quatro. Um dia não apareceu mais.
DC – A senhora vê muitos professores desesperados?
Glaucia – Muitos. É um estresse a que todos estão submetidos, do Jardim até a 8ª série, porque não é só uma situação de adolescentes, é desde os pequeninos, de fugirem da sala, de saírem correndo, de não respeitarem, de jogarem coisas no professor. É a situação rotineira. A maioria acaba chorando. Parece que a gente perde o chão em certos momentos, perde o controle no sentido de não saber o que fazer. É comum que alguém chore quando nos reunimos.
DC – Hoje a senhora teria condições de encarar uma aula?
Glaucia – (Chorando) Não, não teria. Vou ser bem sincera, ainda não saí da sala da minha casa para o pátio. Não vou nem ao pátio. Já estou começando a caminhar de muleta, caminhando mais firme. Mas não vou. Não sei explicar. Não quero que as pessoas me vejam. Não quero.
DC – A senhora acredita que é possível ter uma educação de qualidade?
Glaucia – Acredito. Estudei sempre em escola pública e acredito que foram escolas muitas boas.
DC – Qual seria a primeira medida para recuperar esses padrões?
Glaucia – Levar as famílias para dentro da escola, oferecer mais palestras, integração dos pais com os alunos, mostrar que a escola é uma ampliação da casa deles, que eles estão ali para ampliar o conhecimento, mas que não é só ali que vão aprender. No ano passado, fiz uma apresentação de final de ano com os alunos e me surpreendi. Ensaiamos dança e música. A apresentação foi linda, eles estavam muito felizes. Pais, tios, primos compareceram. No final, alguns vieram falar comigo: “Professora, prazer, sou a mãe do fulano. Parabéns, meu filho mudou.”

Diário Catarinense
Brasil

Sem comentários: