"As políticas de educação postas em prática ao longo das últimas décadas tiveram efeitos que só podem qualificar-se de desastrosos.
A eliminação, durante anos, dos exames nacionais no final de cada grau de ensino não democratizou a educação, mas eliminou a noção de mérito e de esforço e acabou por pôr o ensino básico, obrigatório, em concorrência com formas de entretenimento, numa luta desigual que só podia ditar a derrota da escola. Essa forma de ver o ensino depressa o transformou, para os estudantes, numa espécie de pena a cumprir de que nada se espera a não ser a libertação; para as famílias, numa forma de «arrumar» as crianças enquanto trabalham; para os professores, numa luta contra o desinteresse e a falta de estímulo quase generalizadas. É claro que nada é menos democrático do que este estado de coisas, que reserva a qualidade da educação a uma minoria mais consciente, ou que tem a sorte de deparar com uma escola que conseguiu escapar ao marasmo.
O sistema de ensino tem, de facto, que ser meritocrático, o que não equivale a antidemocrático. Pelo contrário, exige-se-lhe ser capaz de procurar e estimular o mérito onde ele existe, uma responsabilidade tanto maior quanto a educação é mesmo o único meio de o conseguir. Como lembrava Peter Drucker num texto memorável que escreveu para o Economist, «a sociedade do conhecimento é a primeira sociedade humana em que a ascensão social é potencialmente ilimitada. O conhecimento difere dos outros meios de produção pelo facto de não poder ser herdado nem doado. Tem de ser adquirido de novo por cada indivíduo e todos partem da mesma total ignorância». Contudo, para que esse potencial de ascensão se concretize, é necessário adquirir o conhecimento: não basta cumprir n anos de ensino obrigatório.
O sistema de ensino tem, além disso, que ser selectivo, o que não quer dizer exclusivo. Compete-lhe perceber as vocações e os talentos e encaminhar cada um para o ramo de actividade em que elas melhor possam desenvolver-se. O desenvolvimento das aptidões específicas compete ao ensino secundário e superior, mas a sua identificação tem de começar no básico. Ser selectivo não implica, porém, «chumbar» alunos (ou «retê-los», para usar a expressão politicamente correcta). Países há em que as retenções são simplesmente proibidas, mas que não deixam por isso de ter sistemas eficientes, meritocráticos e selectivos. Tal sucede porque, à ausência de retenção, equivale um trabalho diferenciado e rigoroso com os alunos em dificuldades que, à saída de cada grau de ensino e definindo a sua evolução futura, defrontam os mesmos exames nacionais exigentes e porque estes são parte da avaliação da própria escola e dos agentes de ensino.
É claro que, neste contexto, compete ao ensino básico uma outra tarefa essencial: como a própria designação o diz, ele é responsável por transmitir as bases de conhecimento essenciais para que os vários talentos possam desenvolver-se e para formar uma sociedade capaz de compreender o mundo em que vive, a um nível que vá para além das telenovelas e do futebol. Essas bases consistem nas três áreas fundamentais sobre que incidem a maior parte dos exames, das análises e do coro de lamentações que os acompanham: as capacidades linguísticas, a matemática e as ciências.
Os resultados que vemos alcançar, tanto no ensino básico como no secundário, mostram que o sistema de ensino em Portugal se perdeu durante demasiado tempo por meandros e que urge fazê-lo regressar ao rumo certo. A desculpa para os maus resultados que consiste em atribuí-los aos meios desfavorecidos de onde os alunos são oriundos é o pior sinal de uma escola que não reconhece que uma das suas responsabilidades fundamentais consiste precisamente em atenuar essas diferenças. Para isso é necessário que, além de exames nacionais exigentes, exista uma muito maior autonomia de gestão e diversidade de meios nas escolas, o que pressupõe, por seu turno, a avaliação dessa gestão.
Tudo isto exige um trabalho difícil e o esforço de todos. Do que seguramente não precisa é de recriminações e de passa-culpas. Os políticos, as famílias, os professores e os técnicos de educação são todos solidariamente responsáveis por remediar a situação. A perda de qualidade das bases do ensino que ocorreu ao longo das últimas décadas torna essa tarefa muito mais difícil. Por um lado, ela também afectou a formação de muitos professores: não são raros, por exemplo, os jovens que optam pelas escolas superiores de educação por não terem conseguido aproveitamento em matemática. Por outro lado, talvez ainda mais fundamental, ela agravou um vezo de séculos da sociedade portuguesa, que se traduz em consignar o espírito científico a uma minoria fechada, enquanto os outros se contentam com observações impressionistas e com a aceitação acrítica de «factos» que de factual só têm o ser assim apresentados por alguém a quem os fazedores de opinião atribuem «autoridade».
Quando uma sociedade se confronta com a transformação a que Portugal está a ser obrigado, fazem-lhe muita falta as capacidades linguísticas e matemáticas para poder adquirir novas competências que as tecnologias modernas não dispensam. Mas mais falta ainda lhe faz a capacidade de discernir entre factos, opiniões e desejos, o que supõe saber usar a informação e não se limitar à preguiça mental de aceitar qualquer dado porque ele confirma as suas impressões ou porque provém de uma «autoridade». Os princípios mais básicos do método científico previnem contra essa atitude, mas estão completamente ausentes do debate nacional. Em vez de lamentar a ausência de diferenciação ideológica no centro do espectro político, devíamos sim lamentar a falta de rigor do debate das questões em que todos estão de acordo quanto aos fins – crescimento económico, um bom sistema educativo, segurança do sistema de pensões – mas onde a análise dos meios exige um cada vez maior discernimento a que muitos continuam a preferir a cegueira ou o oportunismo político."
A eliminação, durante anos, dos exames nacionais no final de cada grau de ensino não democratizou a educação, mas eliminou a noção de mérito e de esforço e acabou por pôr o ensino básico, obrigatório, em concorrência com formas de entretenimento, numa luta desigual que só podia ditar a derrota da escola. Essa forma de ver o ensino depressa o transformou, para os estudantes, numa espécie de pena a cumprir de que nada se espera a não ser a libertação; para as famílias, numa forma de «arrumar» as crianças enquanto trabalham; para os professores, numa luta contra o desinteresse e a falta de estímulo quase generalizadas. É claro que nada é menos democrático do que este estado de coisas, que reserva a qualidade da educação a uma minoria mais consciente, ou que tem a sorte de deparar com uma escola que conseguiu escapar ao marasmo.
O sistema de ensino tem, de facto, que ser meritocrático, o que não equivale a antidemocrático. Pelo contrário, exige-se-lhe ser capaz de procurar e estimular o mérito onde ele existe, uma responsabilidade tanto maior quanto a educação é mesmo o único meio de o conseguir. Como lembrava Peter Drucker num texto memorável que escreveu para o Economist, «a sociedade do conhecimento é a primeira sociedade humana em que a ascensão social é potencialmente ilimitada. O conhecimento difere dos outros meios de produção pelo facto de não poder ser herdado nem doado. Tem de ser adquirido de novo por cada indivíduo e todos partem da mesma total ignorância». Contudo, para que esse potencial de ascensão se concretize, é necessário adquirir o conhecimento: não basta cumprir n anos de ensino obrigatório.
O sistema de ensino tem, além disso, que ser selectivo, o que não quer dizer exclusivo. Compete-lhe perceber as vocações e os talentos e encaminhar cada um para o ramo de actividade em que elas melhor possam desenvolver-se. O desenvolvimento das aptidões específicas compete ao ensino secundário e superior, mas a sua identificação tem de começar no básico. Ser selectivo não implica, porém, «chumbar» alunos (ou «retê-los», para usar a expressão politicamente correcta). Países há em que as retenções são simplesmente proibidas, mas que não deixam por isso de ter sistemas eficientes, meritocráticos e selectivos. Tal sucede porque, à ausência de retenção, equivale um trabalho diferenciado e rigoroso com os alunos em dificuldades que, à saída de cada grau de ensino e definindo a sua evolução futura, defrontam os mesmos exames nacionais exigentes e porque estes são parte da avaliação da própria escola e dos agentes de ensino.
É claro que, neste contexto, compete ao ensino básico uma outra tarefa essencial: como a própria designação o diz, ele é responsável por transmitir as bases de conhecimento essenciais para que os vários talentos possam desenvolver-se e para formar uma sociedade capaz de compreender o mundo em que vive, a um nível que vá para além das telenovelas e do futebol. Essas bases consistem nas três áreas fundamentais sobre que incidem a maior parte dos exames, das análises e do coro de lamentações que os acompanham: as capacidades linguísticas, a matemática e as ciências.
Os resultados que vemos alcançar, tanto no ensino básico como no secundário, mostram que o sistema de ensino em Portugal se perdeu durante demasiado tempo por meandros e que urge fazê-lo regressar ao rumo certo. A desculpa para os maus resultados que consiste em atribuí-los aos meios desfavorecidos de onde os alunos são oriundos é o pior sinal de uma escola que não reconhece que uma das suas responsabilidades fundamentais consiste precisamente em atenuar essas diferenças. Para isso é necessário que, além de exames nacionais exigentes, exista uma muito maior autonomia de gestão e diversidade de meios nas escolas, o que pressupõe, por seu turno, a avaliação dessa gestão.
Tudo isto exige um trabalho difícil e o esforço de todos. Do que seguramente não precisa é de recriminações e de passa-culpas. Os políticos, as famílias, os professores e os técnicos de educação são todos solidariamente responsáveis por remediar a situação. A perda de qualidade das bases do ensino que ocorreu ao longo das últimas décadas torna essa tarefa muito mais difícil. Por um lado, ela também afectou a formação de muitos professores: não são raros, por exemplo, os jovens que optam pelas escolas superiores de educação por não terem conseguido aproveitamento em matemática. Por outro lado, talvez ainda mais fundamental, ela agravou um vezo de séculos da sociedade portuguesa, que se traduz em consignar o espírito científico a uma minoria fechada, enquanto os outros se contentam com observações impressionistas e com a aceitação acrítica de «factos» que de factual só têm o ser assim apresentados por alguém a quem os fazedores de opinião atribuem «autoridade».
Quando uma sociedade se confronta com a transformação a que Portugal está a ser obrigado, fazem-lhe muita falta as capacidades linguísticas e matemáticas para poder adquirir novas competências que as tecnologias modernas não dispensam. Mas mais falta ainda lhe faz a capacidade de discernir entre factos, opiniões e desejos, o que supõe saber usar a informação e não se limitar à preguiça mental de aceitar qualquer dado porque ele confirma as suas impressões ou porque provém de uma «autoridade». Os princípios mais básicos do método científico previnem contra essa atitude, mas estão completamente ausentes do debate nacional. Em vez de lamentar a ausência de diferenciação ideológica no centro do espectro político, devíamos sim lamentar a falta de rigor do debate das questões em que todos estão de acordo quanto aos fins – crescimento económico, um bom sistema educativo, segurança do sistema de pensões – mas onde a análise dos meios exige um cada vez maior discernimento a que muitos continuam a preferir a cegueira ou o oportunismo político."
Teodora Cardoso
Jornal de Negócios
Sem comentários:
Enviar um comentário