"Declaração pessoal de interesses: dois filhos, a frequentar o ensino básico e secundário. Professores entre familiares e amigos. Professor no ensino superior desde 1988.
Posto isto, mantenho em relação à pessoa da Sra. Ministra da Educação a opinião que há uns meses aqui lavrei. Continuo convencido de se tratar de alguém que genuinamente procura desenvolver um trabalho corajoso e meritório. Num contexto muitíssimo difícil.
O que há muitos anos me vem incomodando é que a apreciação que faço da pessoa de Maria de Lurdes Rodrigues é, com ressalva de ténues nuances, a mesma que fiz de outros que a antecederam. Para refrescar memórias, cito José Augusto Seabra, Roberto Carneiro, Manuela Ferreira Leite, Marçal Grilo, Oliveira Martins, Augusto Santos Silva, Júlio Pedrosa ou David Justino. Entre outros.
A todos tomei - e tomo - por pessoas competentes, sérias e íntegras. Firmemente dedicadas, empenhadas no que acreditavam ser o melhor contributo que poderiam prestar ao País. Em relação a cada um deles, ficou-me quase sempre gravada a percepção de que desejariam ter ido mais longe.
Mas debalde. Ainda que vasculhemos o armário em busca de «casos de sucesso’, nenhum daqueles homens e mulheres deixou qualquer marca que a sociedade hoje reconheça como exemplo. Genuinamente, nenhum deles reformou o sistema - por convicção política, por acomodação ou porque a ousadia lhes foi cerceada.
A conclusão a que se chega é que o drama da Educação há muito que deixou de ser uma questão de ministro. O problema não está na Ministra da Educação. Está, isso sim, na Educação da Ministra. Está na Educação dos que, em longa procissão, a antecederam no lugar. Por outras palavras, está na concepção geral do sistema e no indevido papel que todos eles reconheceram ao Estado na Educação. Concepção essa de que Maria de Lurdes Rodrigues partilhará, o que é garantia quase certa de que muito pouco - ou quase nada - poderá vir a mudar para melhor. Uma certa vocação dos portugueses para polícias e juízes explica que a Ministra esteja de novo sob fogo. Mas só em parte. Muito mais importante é a constatação de que o «cadeirão’ sito à Avenida 5 de Outubro é um quase absoluto vazio de poder. Na verdade, embora responsável por tudo quanto se passa no sistema educativo, a Ministra não dispõe de qualquer poder de intervenção estruturante no dito sistema.
A razão primeira deste juízo decorre da óbvia ingovernabilidade da infernal máquina administrativa em que o Ministério da Educação se transformou. Um cancro multi-resistente, com metástases profundas e dispersas. Milhares de funcionários, centenas de milhar de professores, milhões de alunos e pais, largos milhares de estabelecimentos de ensino, do Minho ao Algarve. Tudo isto entre cantinas, manuais escolares, acção social, exames, concursos, estatutos de carreira, programas curriculares, aberturas de ano lectivo, avaliações externas, etc. etc.
Vai ainda Maria de Lurdes Rodrigues a tempo de marcar a diferença para melhor? Pelas suas características pessoais, valeria o benefício da dúvida. Mas seguramente que não marcará qualquer diferença se prosseguir pelo caminho que vem trilhando. Nada de estrutural se conseguirá mudar na Educação sem efectivo poder. Por paradoxal que isso pareça, a Ministra só tem uma via para tentar recuperar esse poder: diminuir drasticamente a dimensão do seu Ministério. Desmembrar essa monstruosa máquina administrativa que a tolhe. Para isso, terá que ousar pôr em causa todo um rol de mitos que enformam toda uma concepção anquilosada do papel do Estado na Educação.
O Estado não tem que produzir educação. Não tem que empregar professores. Muito menos tem que assumir a responsabilidade de colocá-los em escolas por via de um regime de roleta, deportando-os massivamente de região em região. Não tem que decidir sobre manuais escolares e seus conteúdos. Não tem que interferir na governação das escolas. Não tem, sequer, que ser proprietário de escolas.
Enquanto a Sra. Ministra não perfilhar e puser em acção uma ampla reforma visando a descentralização do ensino, do pré-escolar ao secundário avançado, não possuirá qualquer poder real de acção sobre o sistema. Uma descentralização efectiva e real, à escala municipal, ou em âmbito regional - eis um excelente desafio para todos quantos pugnam pela descentralização administrativa no país.
Acredito ser possível vencer o desafio da Educação num sistema descentralizado. Em que o Estado não pontue obstinadamente como (medíocre) produtor compulsivo, mas, ao invés, em que lhe caiba a missão de um regulador atentíssimo, com mão-de-ferro sobre prevaricadores. Só confio num sistema em que as escolas gozem de plena autonomia. Autonomia na contratação de professores, genuinamente motivados. Na admissão e na avaliação dos alunos. Na administração de poderes disciplinares. No planeamento de actividades lectivas e extra-lectivas.
Acredito em escolas - e em redes de escolas locais, públicas ou privadas, o que menos me importa é quem produz - submetidas a uma sã gestão confiada a gestores imputáveis nos sucessos e nas falhas. Acredito nos estímulos de uma saudável rivalidade e competição entre escolas. Acredito que só um sistema descentralizado poderá estimular a assunção de responsabilidades educativas pelo binómio escola-família. E acredito num sistema em que os pais gozem sempre da soberana prerrogativa de escolherem a quem confiam os seus filhos.
No quadro de um sistema educativo descentralizado, muito sobra ao Estado para assegurar. Garantir a equidade de acesso de todos ao sistema, a qualquer escola e a qualquer área de ensino, suportando encargos com a inerente acção social. Estabelecer referenciais exigentes em matéria de qualidade das escolas e orientações gerais sobre o ensino. Assegurar a administração de exames nacionais obrigatórios no termo de cada ciclo. Fiscalizar e inspeccionar activamente todo o sistema e agentes que nele intervêm. Parece pouco? É muito. É missão nobre e difícil. E devolveria ao Ministério o poder de actuação de que ele hoje não dispõe.
Rezam as más-línguas que, sentada no dito «cadeirão», Manuela Ferreira Leite terá um dia desabafado, batendo com o tacão no soalho do último andar do prédio: «Daqui para baixo, eu não mando nada.» Pode nem ser verdade. Mas ninguém estranharia que fosse. Inteligente como revela sê-lo, Maria de Lurdes Rodrigues já terá chegado à mesma conclusão.
E agora, Maria de Lurdes? "
Ricardo Cruz, professor do ensino superior
Posto isto, mantenho em relação à pessoa da Sra. Ministra da Educação a opinião que há uns meses aqui lavrei. Continuo convencido de se tratar de alguém que genuinamente procura desenvolver um trabalho corajoso e meritório. Num contexto muitíssimo difícil.
O que há muitos anos me vem incomodando é que a apreciação que faço da pessoa de Maria de Lurdes Rodrigues é, com ressalva de ténues nuances, a mesma que fiz de outros que a antecederam. Para refrescar memórias, cito José Augusto Seabra, Roberto Carneiro, Manuela Ferreira Leite, Marçal Grilo, Oliveira Martins, Augusto Santos Silva, Júlio Pedrosa ou David Justino. Entre outros.
A todos tomei - e tomo - por pessoas competentes, sérias e íntegras. Firmemente dedicadas, empenhadas no que acreditavam ser o melhor contributo que poderiam prestar ao País. Em relação a cada um deles, ficou-me quase sempre gravada a percepção de que desejariam ter ido mais longe.
Mas debalde. Ainda que vasculhemos o armário em busca de «casos de sucesso’, nenhum daqueles homens e mulheres deixou qualquer marca que a sociedade hoje reconheça como exemplo. Genuinamente, nenhum deles reformou o sistema - por convicção política, por acomodação ou porque a ousadia lhes foi cerceada.
A conclusão a que se chega é que o drama da Educação há muito que deixou de ser uma questão de ministro. O problema não está na Ministra da Educação. Está, isso sim, na Educação da Ministra. Está na Educação dos que, em longa procissão, a antecederam no lugar. Por outras palavras, está na concepção geral do sistema e no indevido papel que todos eles reconheceram ao Estado na Educação. Concepção essa de que Maria de Lurdes Rodrigues partilhará, o que é garantia quase certa de que muito pouco - ou quase nada - poderá vir a mudar para melhor. Uma certa vocação dos portugueses para polícias e juízes explica que a Ministra esteja de novo sob fogo. Mas só em parte. Muito mais importante é a constatação de que o «cadeirão’ sito à Avenida 5 de Outubro é um quase absoluto vazio de poder. Na verdade, embora responsável por tudo quanto se passa no sistema educativo, a Ministra não dispõe de qualquer poder de intervenção estruturante no dito sistema.
A razão primeira deste juízo decorre da óbvia ingovernabilidade da infernal máquina administrativa em que o Ministério da Educação se transformou. Um cancro multi-resistente, com metástases profundas e dispersas. Milhares de funcionários, centenas de milhar de professores, milhões de alunos e pais, largos milhares de estabelecimentos de ensino, do Minho ao Algarve. Tudo isto entre cantinas, manuais escolares, acção social, exames, concursos, estatutos de carreira, programas curriculares, aberturas de ano lectivo, avaliações externas, etc. etc.
Vai ainda Maria de Lurdes Rodrigues a tempo de marcar a diferença para melhor? Pelas suas características pessoais, valeria o benefício da dúvida. Mas seguramente que não marcará qualquer diferença se prosseguir pelo caminho que vem trilhando. Nada de estrutural se conseguirá mudar na Educação sem efectivo poder. Por paradoxal que isso pareça, a Ministra só tem uma via para tentar recuperar esse poder: diminuir drasticamente a dimensão do seu Ministério. Desmembrar essa monstruosa máquina administrativa que a tolhe. Para isso, terá que ousar pôr em causa todo um rol de mitos que enformam toda uma concepção anquilosada do papel do Estado na Educação.
O Estado não tem que produzir educação. Não tem que empregar professores. Muito menos tem que assumir a responsabilidade de colocá-los em escolas por via de um regime de roleta, deportando-os massivamente de região em região. Não tem que decidir sobre manuais escolares e seus conteúdos. Não tem que interferir na governação das escolas. Não tem, sequer, que ser proprietário de escolas.
Enquanto a Sra. Ministra não perfilhar e puser em acção uma ampla reforma visando a descentralização do ensino, do pré-escolar ao secundário avançado, não possuirá qualquer poder real de acção sobre o sistema. Uma descentralização efectiva e real, à escala municipal, ou em âmbito regional - eis um excelente desafio para todos quantos pugnam pela descentralização administrativa no país.
Acredito ser possível vencer o desafio da Educação num sistema descentralizado. Em que o Estado não pontue obstinadamente como (medíocre) produtor compulsivo, mas, ao invés, em que lhe caiba a missão de um regulador atentíssimo, com mão-de-ferro sobre prevaricadores. Só confio num sistema em que as escolas gozem de plena autonomia. Autonomia na contratação de professores, genuinamente motivados. Na admissão e na avaliação dos alunos. Na administração de poderes disciplinares. No planeamento de actividades lectivas e extra-lectivas.
Acredito em escolas - e em redes de escolas locais, públicas ou privadas, o que menos me importa é quem produz - submetidas a uma sã gestão confiada a gestores imputáveis nos sucessos e nas falhas. Acredito nos estímulos de uma saudável rivalidade e competição entre escolas. Acredito que só um sistema descentralizado poderá estimular a assunção de responsabilidades educativas pelo binómio escola-família. E acredito num sistema em que os pais gozem sempre da soberana prerrogativa de escolherem a quem confiam os seus filhos.
No quadro de um sistema educativo descentralizado, muito sobra ao Estado para assegurar. Garantir a equidade de acesso de todos ao sistema, a qualquer escola e a qualquer área de ensino, suportando encargos com a inerente acção social. Estabelecer referenciais exigentes em matéria de qualidade das escolas e orientações gerais sobre o ensino. Assegurar a administração de exames nacionais obrigatórios no termo de cada ciclo. Fiscalizar e inspeccionar activamente todo o sistema e agentes que nele intervêm. Parece pouco? É muito. É missão nobre e difícil. E devolveria ao Ministério o poder de actuação de que ele hoje não dispõe.
Rezam as más-línguas que, sentada no dito «cadeirão», Manuela Ferreira Leite terá um dia desabafado, batendo com o tacão no soalho do último andar do prédio: «Daqui para baixo, eu não mando nada.» Pode nem ser verdade. Mas ninguém estranharia que fosse. Inteligente como revela sê-lo, Maria de Lurdes Rodrigues já terá chegado à mesma conclusão.
E agora, Maria de Lurdes? "
Ricardo Cruz, professor do ensino superior
4 comentários:
Este Ricardo Cruz consegue produzir um texto em que condensa as ditas "soluções" neoliberais para a Educação. Mais não faz do que repetir a cassete neoliberal que se conhece e cuja prática tem sido aplicada em vários países: dos totalitários, tipo Chile de Pinochet, aos democráticos Estados Unidos, Inglaterra, Nova Zelândia, etc.
Os seus resultados práticos têm sido alvo de muitas análises e muitas críticas, designadamente a nível dos seus resultados e da equidade na educação produzida.
Enfim mais uma crítica/apoio de direita à senhora Ministra da Educação, que ela não deixará de ter em consideração. O caminho que a política de educação e não só deste governo aponta no sentido de um governo à direita. Críticas destas são elogios para a Senhora Ministra.
soledade said...
Concordaria com esta análise se se verificasse esta condição:
«Garantir a equidade de acesso de todos ao sistema, a qualquer escola e a qualquer área de ensino, suportando encargos com a inerente acção social.»
Mas a "inclusão social", para usar uma expressão com que o Presidente da República enche a boca, não é prioridade da ministra nem do governo de José Sócrates. A palavra de ordem tem sido conter despesas, sem olhar a custos sociais.
«Estabelecer referenciais exigentes em matéria de qualidade das escolas e orientações gerais sobre o ensino.»
Isto o ME faz e os níveis reais de exigência situam-se presentemente no menor denominador comum.
«Assegurar a administração de exames nacionais obrigatórios no termo de cada ciclo.»
Também faz: "engenharia fina" - exames elaborados segundo "agenda" e com critérios de correcção orientados para a obtenção dos resultados que importa ostentar. Não há neste momento avaliação externa fiável.
Quanto ao trabalho "corajoso e meritório" e às boas intenções da ministra, tenho dificuldade em pronunciar-me: falta-me distanciamento e, de facto, não vi mudanças de fundo, excepto no que respeita a duas coisas:
- agressões aos professores, tomados como únicos responsáveis de TODOS os males do sistema, com o objectivo de conter despesas e de empurrar o maior número possível para os supra-numerários, parecendo-me esse o grande saldo da acção da ministra;
- degradação das condições de trabalho e de aprendizagem. Por exemplo, a arregimentação sem qualquer planeamento de professores ou o prolongamento de horário e o Inglês no 1º Ciclo, avaliados no terreno e não do alto do tamborete da 5 de Outubro, têm deixado muito a desejar. Como muitas associações de pais, algumas dos quais responsáveis por ATL'S associativos, vieram enfim a perceber.
«E agora, Maria de Lurdes?» Tudo isto irá dar frutos que não sejam amargos?
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