domingo, junho 09, 2013

Quem anda a fazer mal aos alunos?

"Peço ao leitor que imagine um aluno. Dê-lhe um nome, escolha-lhe o sexo, invente-lhe dificuldades. Pense, ainda, que essas dificuldades podem resultar de vários factores mais ou menos malignos: violência doméstica, bairro complicado, pais ausentes, dificuldade de acesso a bens materiais e/ou bens culturais, ausência de estímulos intelectuais, o que quiser.
Dê a mão ao seu aluno imaginário e leve-o até à Escola do Primeiro Ciclo do Ensino Básico (se, com o fecho de centenas de escolas, ficar muito longe, vai ter de lhe dar boleia). A turma tem trinta alunos, todos eles numa idade em que a energia parece ser inesgotável. O seu aluno, devido às referidas dificuldades, precisa de um acompanhamento próximo, o que se torna impossível, porque o professor (pode imaginar uma professora, se preferir) não tem tempo para atender a todos os problemas de cada uma daquelas trinta crianças, trinta universos únicos.
É claro que a Escola sempre teve e continuará a ter dificuldade em resolver os problemas cuja origem esteja a montante ou ao lado, mas cabe a uma sociedade civilizada criar as condições para que, pelo menos, se aproxime, o mais possível, de um ideal. Aumentar o número de alunos por turma é escolher o caminho oposto ao do ideal.
O seu aluno, melhor ou pior, chegará ao final do Primeiro Ciclo com muitas das mesmas dificuldades que já trazia, porque, entretanto, os problemas pessoais, sociais e familiares, provavelmente, não terão desaparecido. No meio dos trinta alunos, ao longo dos quatro anos de escolaridade, a Escola dificilmente terá contribuído para minorar, o mais possível, as referidas dificuldades. Os exames impostos pelo antigo crítico do eduquês servirão para fingir uma exigência que não foi possível praticar e ensinar poderá ser substituído, facilmente, pelo treino para o exame.
O seu aluno irá prosseguir a vida escolar, muitas vezes acompanhado por vinte e nove colegas na mesma sala de aula, com professores a quem continuará a ser retirado o tempo necessário para preparar aulas ou corrigir testes, com currículos empobrecidos. As dificuldades avolumam-se, a desmotivação aumentará. Os que tiverem possibilidade, poderão frequentar explicadores. Os outros, face à crescente dificuldade em criar apoios nas escolas, terão de ser reprovados ou encaminhados para um ensino profissionalizante transformado em recurso, o que, perversamente, é a prova de que a sociedade não se preocupou em transformar verdadeiramente a Escola numa entidade que pudesse recuperar, compensar, o mais possível, os problemas de cada aluno.
Até 2005, a Educação, em Portugal, nem sempre soube escolher os melhores caminhos, mas, a pouco e pouco, com demasiados erros, é certo, era possível verificar melhorias. A partir de 2005, desde Maria de Lurdes Rodrigues até hoje, o edifício em mau estado tem vindo a ser demolido, metodicamente. Se os alunos têm aprendido, se têm evoluído, o mérito deve-se, apenas, aos profissionais do ensino, malabaristas que são obrigados a suportar os dislates que o Ministério da Educação lança, quotidiamente, sobre as escolas, ao mesmo tempo que vão, com crescentes dificuldades, fazendo o melhor possível.
Os professores, a várias vozes, andam, há anos, a tentar explicar aos sucessivos governos que as políticas estão erradas: com Sócrates, era o marketing dos relatórios da OCDE, os computadores e a festa da Parque Escolar; com Coelho, confirmou-se o despedimento de professores preparado pelos anteriores governos e o aumento do número de alunos por turma. E estou a ser escandalosamente sintético, porque há mais problemas.
Como já escrevi anteriormente – sem grande originalidade, de resto –, se uma pessoa qualificada numa determinada área fala, repete, aconselha, insiste e não é ouvida, o que lhe resta senão gritar? Depois de todo este tempo, os professores são obrigados, então, a recorrer a uma greve duríssima, porque o que está em causa é demasiado grave, também, para a vida dos próprios professores, profissionais que, por estranho que possa parecer, são pessoas.
Já se sabe que haverá quem se indigne, lembrando que há outros que estão piores e aguentam. Reconheço que vivemos numa sociedade em que o esboroamento dos direitos laborais retira a muitos a possibilidade de reivindicar. Espero, assim, que esta luta dos professores sirva de exemplo e possa arrastar todos aqueles que não estejam dispostos a aguentar, esse verbo tão da preferência de banqueiros.
Os governantes e respectivos satélites amestrados, todos responsáveis pela agressão quotidiana aos jovens, todos participantes nas mesmas políticas que retiram à Escola a possibilidade de ser melhor, andam pelos jornais e pelas televisões a derramar lágrimas hipócritas, procurando convencer a opinião pública de que os professores estão a prejudicar os alunos, ao decidir fazer uma greve que, afinal, está a ter efeitos. O desnorte é tal que Passos Coelho, coitado, dá por si a aconselhar os professores a fazer greve a outro exame.
Se o leitor for um cidadão responsável e informado, mesmo que não tenha filhos ou mesmo que o aluno imaginário não corresponda à situação do seu filho, deve tomar como lição o adágio que lembra que a educação de uma criança é da responsabilidade da aldeia toda. As agressões a que o governo sujeita os alunos não constituem um problema exclusivo dos pais: são um problema do país.
Seria importante que os sindicatos incluíssem esses problemas na lista de reivindicações? Com certeza que sim, mas é importante que os professores tenham a companhia de muitos outros".
 

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