"1. O que Lisboa viu no dia 5 de Outubro, 96 anos depois do nascimento da República e Dia Mundial do Professor, foi a maior manifestação de sempre de docentes portugueses. Simpatize-se ou não com o processo, mais de 20 mil professores (e os números são da polícia, que não de fontes sindicais) a dizerem na rua o que lhes vai nas almas, vindos de todo o país, em dia feriado, foi esmagador. "Ditadora", "autista" e "mentirosa" foram alguns qualificativos endereçados à ministra da Educação, no calor da indignação. Se esta senhora integrasse um governo democrático e de esquerda, estaria agora a pensar. Mas uma voluntarista rudimentar como ela, que chega ao cúmulo de defender publicamente que se deve avançar mesmo que não existam condições para isso, que de Educação só vê cifras e números, mesmo sem os saber interpretar, não pensa.
2. Sendo que o carácter meramente formal da democracia em que vivemos parece não inquietar particularmente os portugueses, já o mesmo se não pode dizer quanto às clivagens que marcam hoje a nossa sociedade. Maliciosamente, políticos e gente de fluente "economês" têm-nas fomentado segundo a velha cartilha salazarenta do dividir para reinar, lançando o privado contra o público e os pais contra os professores (não se ufana a ministra de ter perdido os professores mas ter ganho os pais?). Os mais de 20 mil professores que desceram a Avenida da Liberdade não protestaram apenas contra o aviltamento e contra o roubo. Protestaram contra a sociedade que este Governo de direita liberal cega está a impor-nos, trocando pessoas por estatísticas manipuladas e números falsos, e o concreto, pungente, pelo abstracto. É fácil para os senhores que estiveram no Beato, sob a sigla "Compromisso Portugal", liquidar de uma só vez a vida de 200 mil funcionários públicos e famílias, sem que nos digam aquilo a que eles próprios se comprometem. É fácil para o governador do Banco de Portugal, confortado com o seu belo salário e protegido por uma reforma de privilégio, dizer que os salários dos funcionários públicos devem diminuir. O que é difícil é convencer os professores a andarem para trás enquanto os lucros bancários continuam por tributar, a corrupção grassa, a promiscuidade entre os interesses particulares e os do Estado persiste e os encerramentos de unidades produtivas viáveis se fazem em nome da sacrossanta economia de mercado.
3. A economia é uma caldeirada de ciências que deve ser usada para servir as pessoas, todas as pessoas, para uns. Para outros, a economia é um fim em si e falam dela como os taliban de Alá ou as beatas da Nossa Senhora de Fátima. A maneira como se olha a economia permite distinguir a esquerda da direita. A esquerda não pode governar sem pesar a consequência das suas medidas na vida da Pessoa e das pessoas. É por isso que Sócrates e servos são a direita nua de ideias no poder. Sob o estandarte da rosa murcha, vão ao próximo congresso do partido, que ainda se chama socialista, sem opositores, com um inegável apoio do sebastianismo nacional. Era bom que a indignação atirada ao vento da Avenida da Liberdade ecoasse nos ouvidos dos portugueses. A espoliação que agora toca aos professores chegará a (quase) todos, vintém após vintém.
4. A crise e o clima social que gerou seriam claramente propícios a um emendar de mão, que contaria com a solidariedade dos professores. Mas não chegámos à pré-falência senão por culpa da elite política, dos partidos que nos têm governado e dos erros que, ano após ano, foram cometendo. Era bonito e mobilizador que o reconhecessem, antes de nos ir aos bolsos e às batatas dos nossos filhos. E já que se persignam hipocritamente nas cerimónias oficiais a que presidem, em nome do Estado leigo que representam, bem podiam fazer essa contrição pública em vez de nos elegerem como malfeitores sociais. Foi contra a impossibilidade de corrigir erros de décadas num átimo e a necessidade de partilhar com os interessados as formas de o conseguir que os professores se manifestaram. Foi contra o escandaloso aumento do fosso entre ricos e pobres (segundo o INE, 10 por cento da população, os mais ricos, recebem mais que 50 por cento dessa mesma população, os mais pobres) que os professores protestaram.
5. Falei acima de estatísticas manipuladas. Que bom seria alguma televisão sentar frente a frente, em contraditório público, quem tem leituras diferentes dos mesmíssimos dados estatísticos. E se ficasse claro que apenas um parceiro europeu tem menos funcionários públicos que nós, que temos a segunda mais baixa despesa com saúde da Europa, que somos quem menos gasta em educação, que o número oficial de alunos por professor é uma treta e que os professores portugueses estão bem longe de ser os melhor pagos entre os pares, etc., etc.? Por mim, iria lá deliciado, confesso, e não vetaria interlocutores como a ministra da Educação terá feito para ir ao Prós e Contras. Prometo levar notas de vencimentos dos professores de vários escalões e um belo documento assinado pelo sindicalista Jorge Pedreira, quando então defendia exactamente o contrário do que hoje diz o secretário de Estado Jorge Pedreira, sobre a mesmíssima matéria das carreiras dos docentes".
Santana Castilho
Jornal Público
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